Durante anos, minha foto favorita da vida não era exatamente uma foto, mas um frame de um curta. Na verdade, mais precisamente, do videoclipe de “Strangers in Moscow” do Michael Jackson. Mais precisamente ainda, a imagem aparece aos 02m3s do clipe. Em dado momento, um homem está parado na rua quando começa a chover e vemos a chuva se aproximando lentamente, em câmera lenta. Quando finalmente as primeiras gotas tocam seu rosto, a expressão dele é a de pura transubstanciação, de um momento divino e purificador.
Eu nunca consegui ver essa imagem sem me emocionar e desejar um dia sentir esse essa experiência com esse exato nível de intensidade. Em retrospecto, eu vi esse vídeo muito novo e, talvez, isso explique porque eu sempre tenha apreciado bastante sair na rua em dias de chuva.
Claro que isso quando mais jovem, quando as chuvas eram em uma cidadezinha no interior de SP. Lá, seu pior risco é escorregar enquanto atravessa uma rua de barro.
Aqui, os riscos são menos leves, indo desde um carro desgovernado perdendo o controle e vindo pra cima de ti, passando pela fiação elétrica entrando em curto e te atingindo. E chegando a, não nos esqueçamos, pura e simples leptospirose dada a “qualidade” da água a qual você (ou, no caso, eu) estaria exposto. Dissabores da vida em grandes centros urbanos.
Fora que veio a idade e os luxos tecnológicos atuais. Adolescente, o pior que poderia acontecer é molhar meu caderno da escola e os demais materiais escolares. E como eu nunca dei a mínima pra escola, essa reflexão não me fazia hesitar um segundo antes de sair caminhando calmamente em meio a um pé d’água de proporções bíblicas, mesmo que isso significasse meu caderno e as anotações escolares nele virarem uma massa amorfa semi-liquefeita.
Atualmente, nem ferrando eu faço isso, considerando que direto tô com smartphone e tablet na mochila.
Mas enfim, divago. eu usei o verbo no passado quando falei da foto acima porque, há algum tempo, ela virou minha SEGUNDA foto favorita da vida.
Porque ela foi substituída por essa aqui….
Eu amo essa foto.
Tanto.
Ela dialoga comigo de tantas formas. E de um jeito que só poderia, de fato, dialogar com o Hak the Bear de quase 50 anos de idade.
I mean, olhem pra esse homem.
A placa, em inglês, indicando o ponto de ônibus. A folhagem atrás dele. A pasta que ele segura que, tal qual seu terno, parece mais velha que ele próprio. Mesmo seu guarda chuva, em tom de azul, que parece ser o máximo de ousadia que ele permite em uma vida que parece absolutamente normal e ordinária.
Mas aí vem a máscara.
Por que ele está usando uma máscara? Ele é um luchador indo pra um evento? Ele a colocou em um arroubo de insanidade e nem sequer se tocou que está usando tal indumentaria? Ou a imagem é uma metáfora e estamos vendo a máscara que ele usaria caso pudesse seguir a vocação que um dia abandonou em troca de uma vida “estável”? Fantasmas de uma vida passada, talvez?
Mas a trama fica mais complexa.
Essa foto faz parte de um set composto por um total de 3 imagens. Na primeira, vemos o protagonista diante de um espelho, colocando sua máscara.
E na seguinte, vemos o sujeito diante do que parece ser um set de discotecagem. Ou um sistema de monitoração, não dá pra ter certeza.
The plot thickens.
Ele é um artista que trabalha de máscara? Ou ele é um funcionário público e a máscara que vemos é um lembrete inconsciente do que sua vida poderia ter sido, tivesse ele tomado decisões diferentes?
Eu nunca gostei de quando jornalistas musicais se referem à David Bowie como “camaleão”. Primeiro porque é um daqueles vícios jornalísticos que as pessoas saem reproduzindo sem sequer pensar a respeito.
É como chamar Elvis de “rei” sem pensar nas implicações disso.
E segundo, porque eu sempre achei o oposto do que o artista pretendia.
A tal capacidade camaleônica de Bowie, pra quem não conhece a obra do homem, vem não apenas por sua capacidade de pular entre gêneros, indo do pop ao folk, passando pelo blues, música de crooner, experimentações eletrônicas e rock de arena, e chegando a algo que beira o rock industrial. Mas, além disso, também por suas personas.
Ziggy, Halloween Jack, Aladin Sane, the Thin White Duke, o pierrot, e por aí vai…
O lance que me incomoda aqui, no entanto, e eu já falei disso em tudo que é lugar, incluindo muito provavelmente aqui, em edições anteriores desta newsletter, é que camaleões, e animais dotados da capacidade de mimetismo, usam tais habilidades para se mesclarem ao ambiente em que vivem e poderem se esconder de predadores.
Perfeito, maravilha. Mas Bowie, com suas personas, pretendia o extremo oposto disso. Seu objetivo era se adaptar ao que o publico queria, mesmo sem que este soubesse que era isso que queriam (e aliás, quando o publico sabe o que quer?). E okay, existem casos de personas como o Duke, que surgem para destacar características que Bowie absorve do período em que estas se inserem, e sobre as quais você poderia dizer que, de fato, há uma tentativa de emular e se misturar com o contexto. Mas o fazem de forma tão caricata que acabam soando uma paródia do zeitgeist reinante. Novamente citando o duque, ele vem para representar a transição dos anos 70, década final do sonho hippie, para os frios anos 80, começo da era do individualismo neo liberal e da paranoia dos dias finais da guerra fria. O duque pálido, uma persona calcada nos frios dias do artista em Berlim, representavam o fascismo e o culto à personalidade que surge nessa época e que seguem até os dias atuais.
Novamente, máscaras que vêm não pra esconder, mas pra revelar.
Todos usamos as nossas. Sinto que o único instante em que não estou com uma é quando me encontro absolutamente sozinho, o que talvez explique porque eu aprecie tanto ficar só. Porque quando uma pessoa, quem quer que seja, interage comigo, é showtime, hora de performar. E se eu decido me manter o mais próximo do meu eu autêntico, ainda assim é uma escolha, a de uma performance naturalista. Uma versão minha ao estilo Dogma 95. “Hak The Bear” by Lars Von Trier.
Eu não paro de pensar nisso desde que comecei o canal e agora, de fato, me vejo performando para públicos.
As vezes eu me pergunto se eu sou um poço de raiva, trauma e e ressentimento que usa a máscara de um homem desesperadamente gentil ou se eu sou uma pessoa gentil que usa a máscara do urso e sua fúria típica como forma de me posicionar em um mundo hostil. É um fio da navalha difícil de interpretar e, mais difícil ainda, de se manter sobre.
Saiu o disco novo do Tyler, the creator. “Chromakopia”.
No primeiro vídeo, “St. Chroma”, ele aparece em trajes militares, com os cabelos em formato de chifres e usando uma máscara. Tyler também é um artista de personas, de alter-egos. Me parece que estamos em vias de ver o mais sinistro deles. Mais pro monstruoso Thin White Duke do que pro esperançoso, ainda que trágico, Ziggy.
Ouvi o cd inteiro hoje mais cedo e adorei, mas ainda é cedo pra falar algo mais definitivo, já que discos pedem algumas revisitas, como aliás, quase toda obra de arte, para sua plena compreensão.
Mas recomendo pra caramba. Vai estar, facilmente, em várias listas de melhores álbuns de 2024. Merecidamente.
Mas tergiverso. So, de volta à Nacho, o lutador sobre o qual falava alguns parágrafos acima… Me sinto em uma relação tipo “decifra-me ou devoro-te”. Mais cruel ainda, me sinto olhando um espelho, tal qual o próprio Luchador em uma das fotos do set.
Há mais de 30 anos, eu esbocei um plano que tem sido o norte da minha vida.
Sair de Avaré
Voltar pra SP
Fazer faculdade
Conseguir um trabalho relativamente estável e que seja de pouca demanda, suficiente para que eu possa faze-lo bem enquanto estudo outras coisas.
Usar o dinheiro de tal trabalho para financiar o que eu quero ser de fato
E, uma vez já no trabalho que eu quero, de fato, viver disso até a morte.
Sobem os créditos.
Nesse caminho, eu percebi finalmente o que eu queria da vida, que é o que eu faço no momento e o que tenho estudado com certo afinco já faz alguns anos. Escrever sobre arte. Mais precisamente, sobre minha forma de arte favorita, os quadrinhos.
Se eu tiver que chamar isso de “produção de conteúdo” porque é assim que o fusca anda nos nossos dias atuais pré-apocalípticos, que seja. Se eu tiver que aprender a performar diante das câmeras ou via texto ou como tiver que ser, que seja.
Eu escolhi uma máscara e, tal qual as que menciono acima, ela de fato não vem pra esconder, mas pra revelar.
Hak The Bear.
Ignorem o humano.
Foquem no Urso.
É isso crianças. Ouçam Chromakopia. E David Bowie.
Ouçam de tudo. Mas com critério. Jamais ouçam Black Eyed Peas. Eu ODEIO Black Eyed Peas.
E sertanejo. E metal de dragãozinho.
Mas isso sou eu. Se vocês curtem, all power to you people.
Divirtam-se.
Fiquem bem.
Volto logo.
Too Sweet
Nem Blind Guardian?